A demolição de construções ilegais num bairro de Loures, autarquia presidida pelo socialista Ricardo Leão, instalou a polémica nos últimos dias e abriu já um debate dentro do próprio Partido Socialista (PS).
Numa carta aberta, ex-governantes e deputados do PS manifestaram "profunda indignação e preocupação" com "a demolição do teto de dezenas de famílias".
A carta, com o título "sobre a demolição de princípios e de barracas", foi lançada na terça-feira por "militantes e simpatizantes do PS", e somava mais de uma centena de assinaturas. Na sua origem está o ex-ministro da Educação João Costa, os ex-governantes de executivos de António Costa e atualmente deputados António Mendonça Mendes e Frederico Francisco ou a deputada Isabel Moreira, entre outros.
Para estes socialistas, demolir barracas "sem garantir soluções habitacionais alternativas, adequadas e imediatas" contraria os "princípios constitucionais e estatutários" e "mancha a credibilidade e o compromisso ético que o PS deve assumir perante os cidadãos".
"Apelamos à coerência: a política socialista começa pelas pessoas, nunca contra elas. Apelamos à mobilização das estruturas do PS para refletir sobre estas práticas e defender com coerência os valores que nos definem. Queremos um PS que seja, verdadeiramente, um instrumento de transformação social, justiça e solidariedade - não apenas nas palavras, mas sobretudo nos atos", desafiam.
Os signatários defendem que o "direito à habitação está consagrado como um direito fundamental de todos os cidadãos, bem como o dever do Estado em promover as condições para a concretização deste direito", além de ser "obrigação do Estado e das autarquias locais assegurar a proteção social e o apoio às pessoas em situação de maior vulnerabilidade".
Referem ainda que a declaração de princípios do PS orienta "para a defesa da justiça social, da inclusão e da solidariedade", o que consideram ser "valores fundamentais" que devem nortear a ação política dos socialistas.
Autarca de Loures não transmitiu "empatia e socialismo"
Também no dia de ontem, o líder parlamentar do PS, Eurico Brilhante Dias, reconheceu que o presidente da câmara de Loures não transmitiu "empatia e socialismo", mas defendeu que o episódio não põe em causa os pilares socialistas.
Brilhante Dias apontou, contudo, que conhece Ricardo Leão e "todo o seu esforço para tornar o território que administra o melhor território possível para as pessoas que vivem em Loures". "Reconheço nele a empatia e o socialismo. Nem sempre é essa a perceção que passa, e desta vez, aparentemente, não foi essa a perceção que passou", apontou.
Sobre a referida carta aberta, o líder parlamentar do PS considerou que "este é um episódio particular" e "os pilares do Partido Socialista, felizmente, são tão fundos que têm mais de 50 anos".
Líder do PS diz que Loures teve "todos os cuidados" nas demolições
Já o Secretário-geral do PS, José Luís Carneiro, disse ter sido informado, pela Câmara de Loures, que foram tomados "todos os cuidados" com as pessoas afetadas pela demolição de construções ilegais.
"Garantem-me da Câmara Municipal de Loures que todos os cuidados houve em relação ao diálogo que foi feito com os respetivos cidadãos que foram confrontados com esta decisão. Garantem-me isso e, portanto, quero crer que assim foi", disse o líder do PS aos jornalistas em Beja.
Carneiro admitiu ser necessário compreender "as dificuldades" de um conjunto de autarquias na Área Metropolitana de Lisboa, que "hoje se confrontam, de novo, com o reaparecimento de construções de barracas ilegais", que "colocam em causa a segurança e a própria salubridade, mas particularmente a segurança e a dignidade das pessoas".
"Contudo, também há o dever de cumprir todas as diligências para procurar garantir que os despejos se fazem com salvaguarda da dignidade, da proteção dos direitos humanos e, particularmente, da proteção de pessoas que vivem em especiais circunstâncias de vulnerabilidade", acrescentou.
Perante este quadro, José Luís Carneiro defendeu que o Governo não pode "deixar ficar os autarcas sós com um problema tão complexo para resolver".
Recorde-se que a autarquia de Loures, presidida pelo socialista Ricardo Leão, iniciou na segunda-feira uma operação de demolição de 64 habitações precárias, onde vivem 161 pessoas, no Talude Militar.
O Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa aceitou entretanto, provisoriamente, uma providência cautelar interposta por uma advogada em representação de 14 moradores do bairro - quando, pelo menos, 54 casas tinha já sido demolidas.
O tribunal considera "verificada a situação de especial urgência", decretando a notificação da sua decisão "de imediato e da forma mais expedita", e recorda ainda que "o processo cautelar é um processo urgente", dando ao município um prazo de 10 dias para contestar a decisão, "sem prejuízo do despacho".
Leão soma polémicas
Note-se que já em novembro do ano passado, Ricardo Leão esteve envolvido numa outra polémica que também levou a que se levantassem diversas vozes, incluindo a do ex-primeiro-ministro António Costa. Na altura, Ricardo Leão defendeu, numa reunião pública, o despejo de inquilinos em habitações municipais que tenham participado nos distúrbios após a morte do cabo-verdiano Odair Moniz, baleado por um agente da PSP. Nesta sequência, viria mesmo a demitir-se do cargo de presidente da Federação da Área Urbana de Lisboa (FAUL) do PS.
Cerca de um mês depois, a demolição de 15 casas autoconstruídas e o despejo de nove apartamentos num bairro clandestino da freguesia de Santa Iria da Azoia, naquele concelho do distrito de Lisboa, onde viviam perto de uma centena de pessoas, na maioria imigrantes, também deu que falar.
Mais recentemente, por exemplo, o autarca de Loures voltou a tecer declarações que geraram controvérsia. Ricardo Leão indicou que existia a intenção de despejar cerca de 400 arrendatários municipais de bairros do concelho, que estavam em incumprimento e não tinham respondido às tentativas de regularização das dívidas.
O executivo de Loures é composto por quatro eleitos do PS, incluindo o presidente, quatro da CDU, dois do PSD e um do Chega.
O PS e o PSD estabeleceram um acordo para garantir a estabilidade governativa da Câmara Municipal, ganha em setembro de 2021 por Ricardo Leão sem maioria absoluta.
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