Teatro do Vestido trabalha a memória para combater "amnésia histórica"

O Teatro do Vestido, que neste fim de semana palmilhou o Bairro das Amendoeiras, em Lisboa, para recordar a ocupação de casas após o 25 de Abril, continua a trabalhar a memória para combater a "amnésia histórica".

Entrevista a Joana Craveiro

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Lusa
22/07/2025 19:20 ‧ ontem por Lusa

Cultura

Teatro

Situado em Marvila, na zona mais conhecida como Chelas, o Bairro das Amendoeiras foi reclamado, quatro dias depois do 25 de Abril de 1974, por uma população que na altura vivia em barracas espalhadas por várias zonas de Lisboa e que ocupou as casas que ali estavam, construídas e desabitadas.

 

Durante um ano, ali viveram, dia e noite, sem chaves, sem água, sem luz, até verem reconhecido o direito a permaneceram nas casas que fizeram suas.

A história inspirou o Teatro do Vestido, que quis prestar homenagem às "lutas das mulheres e homens que ousaram experimentar novas formas de organização popular".

O resultado foi o espetáculo 'Museu dos Moradores' -- mostrado neste fim de semana, por quatro vezes --, inserido no trabalho "com e pela memória" que o Teatro do Vestido tem vindo a desenvolver.

"Muitas dessas pessoas que fizeram essas ocupações estão aqui hoje e encontramo-las na rua. Toda a gente conta essas histórias e (...) com muito orgulho. Não há cá memórias envergonhadas", relatou a diretora artística do Teatro do Vestido, Joana Craveiro.

Em entrevista à Lusa, no sábado, antes de começar uma das "deambulações participadas", a dramaturga fez a ponte com a atual crise habitacional.

Em Chelas, por estes dias, encontrou "uma indignação total" com os despejos e as demolições, "uma espécie de compaixão, como não se encontra se calhar noutros sítios, porque as pessoas parece que reveem a sua vida a passar diante dos olhos".

O direito à habitação está consagrado na Constituição, "portanto, é um direito que temos todos e todas", lembra, contando que cenas como as que vimos acontecer no bairro do Talude Militar, em Loures, há uma semana, despertaram nos moradores do bairro "uma memória traumática muito forte".

A mesma "indignação" surge perante o facto de os seus filhos -- deles, que ocuparam casas vazias em 1974 -- não conseguirem hoje (man)ter uma habitação.

Uma moradora que colaborou com a equipa do teatro aguarda que os filhos de 50 anos, também eles já com filhos, regressem à sua casa de dois quartos, onde passarão a viver todos.

"Há uma ligação absolutamente clara, (...) entre o presente que nós vivemos e o passado, que eu também não vivi, mas que me foi contado ou de que eu fui à procura", acredita Joana Craveiro.

O importante é "oferecer ao espectador uma experiência de histórias a que ele de outra forma não vai ter acesso, porque elas não estão inscritas no espaço público, não estão inscritas nos manuais e, pelo contrário, muitas vezes há como que uma destruição dessas histórias", observa.

"Nos nossos espetáculos, confiamos nos nossos espectadores, que eles vão fazer qualquer coisa com isto, seja ficar mais despertos, seja mais conscientes", assume, recordando que as pessoas que ocuparam casas no Bairro das Amendoeiras receberam a promessa, numa assembleia em 1974, de que, ao fim de 25 anos, as casas seriam delas, mediante uma renda controlada que pagariam até essa altura.

Não havia nada escrito, "porque a palavra valia tudo", e, "ao fim de 25 anos as casas não eram deles", assinala, recordando que o Estado transferiu a propriedade dos bairros sociais das Amendoeira e dos Loios para uma fundação privada, que aumentaria as rendas em mil por cento.

Em 2007, acabariam por voltar para a alçada do Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana, mas ainda são diversos os problemas que ali se encontram.

"O que fizemos foi, basicamente, andar pelas ruas, tocar a campainhas ou abordar pessoas na rua, sentadas, com uma certa faixa etária, (...) e perguntar, como é que chegou aqui? Veio em 74? Quando a pessoa diz que sim, abre-se um dique de histórias", relatou Joana Craveiro.

A dramaturga destaca ainda que as mulheres estiveram "na linha da frente", defendendo as casas enquanto os maridos iam trabalhar, e isso mesmo confirmou uma moradora, que entrou na peça para dar o seu testemunho real.

Atualmente, o espaço público "está muito difícil", reconhece Joana Craveiro.

"A nossa sociedade, a nossa comunidade está fragmentada, todos os esqueletos estão a sair do armário", lamenta, remetendo para o passado, mais uma vez: "Naquela altura, toda a gente era democrata, de repente, toda a gente era antifascista e isso não era verdade, esse consenso não existia, nem nunca existiu, porque a revolução foi feita contra alguns, por isso é que é uma revolução."

Ora, passados 51 anos do 25 de Abril, "nunca conseguimos olhar de frente a nossa história" e esse "passado colonial mal resolvido (...) apanha-nos agora, (...) numa sociedade fragmentada, despolitizada ou politizada de uma forma que nós nem conseguimos perceber muito bem".

Entretanto, em novembro, o Teatro do Vestido vai estrear 'Torrente', um olhar sobre "o processo revolucionário como um todo", adiantou Joana Craveiro.

Isto porque o povo saiu à rua a 25 de Abril de 1974, mas o processo revolucionário estendeu-se para lá disso, ensaiando "novas formas de poder popular".

Além disso, mesmo quando se fala do PREC (Processo Revolucionário Em Curso, conturbado período de acontecimentos políticos, militares e sociais que agitaram Portugal entre 28 de setembro de 1974 e 25 de novembro de 1975), não se particulariza: "o que é que aconteceu na saúde, na educação, na habitação?", questiona a dramaturga.

'Torrente' -- que vai estrear na ZDB Galeria Zé dos Bois e é um coprodução com o Teatro Académico de Gil Vicente (TAGV), de Coimbra -- será um espetáculo "de fôlego", para "tentar cobrir esses diferentes aspetos num processo revolucionário que foi muito completo".

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