"Não lhe chamaria uma solução preguiçosa, porque se fosse, é uma preguiçosa que tem um preço muito alto. Mas é uma solução com eficácia limitada e temos que ter noção disso", disse Cecília Silva em entrevista à Lusa a propósito das eleições autárquicas de 12 de outubro, quando questionada se a gratuitidade dos transportes públicos é uma medida 'preguiçosa' de incentivo ao uso do transporte público.
A professora universitária e investigadora do Centro de Investigação do Território, Transportes e Ambiente (CITTA) da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto (FEUP) e da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra (FCTUC) falava à Lusa numa altura em que tanto candidaturas autárquicas propõem essa medida, como a mesma já foi implementada nalgumas regiões do país.
Cecília Silva diz que a gratuitidade "já foi testada em múltiplos contextos diferentes e pode ter um efeito sobre o número de utilizadores do autocarro e não ter um efeito sobre a repartição modal, que é uma coisa diferente".
"Pode aumentar o número de pessoas que andam de transporte público, mas esses não virem de nenhum outro modo. São utilizadores que passam a utilizar aquele sistema que não utilizavam antes", explica, observando-se um fenómeno de procura induzida, que "não está a dar resposta a uma procura que já está lá presente no terreno" vinda, por exemplo, do automóvel.
Segundo Cecília Silva, medidas deste tipo tendem, "a ir buscar pessoas que fazem viagens de lazer ou que até nem têm razão nenhuma para fazer aquela viagem, mas vão dar um passeio", pelo que não "estão a contribuir para balancear a questão da mobilidade sustentável", apesar de reconhecer que a gratuitidade "também tem um papel", por exemplo, no combate à exclusão.
"Esse papel é limitado e a partir de um certo ponto já não consegue resolver o resto dos problemas e tem uma questão que é potencialmente nefasta: quando nós reduzimos o preço do transporte público ou o tornamos gratuito, estamos diretamente a aumentar o preço que ele vai custar aos impostos, portanto, a todo o país", aponta.
Tal cenário pode "levar à redução da qualidade do serviço prestado", pois uma ordem superior pode, para cortar custos e não tirar a gratuitidade, levar a "reduzir a oferta" do serviço, o que "seria um 'tiro no pé'".
A investigadora abordou ainda a implementação de várias redes de autocarros por todo o país ao abrigo do Regime Jurídico do Serviço Público de Transporte de Passageiros (RJSPTP), e que já levou à criação de redes como a Carris Metropolitana na Área Metropolitana de Lisboa (AML), a Unir na Área Metropolitana do Porto (AMP), ou outras nas Comunidades Intermunicipais (CIM).
Para Cecília Silva, é "um processo que vai demorar algum tempo e que necessariamente precisa de algumas fases", passando de um cenário de "desorganização total do sistema de transporte público" para uma desejável "situação de maior organização" e, depois, "de um pensamento mais estratégico".
Face aos problemas na implementação de algumas das novas redes, Cecília Silva não se admira que "algumas fases sejam confusas, até porque existe também alguma falta de conhecimento técnico", considerando que, apesar de tudo, se está "a seguir uma linha que é positiva, de racionalizar o serviço de transporte público para ele poder passar a ser pensado com estratégia em vez de pela lógica da operação, porque quando havia múltiplos operadores, cada um pensava na lógica da operação, que era maximizar a receita do serviço".
Já nas zonas onde há soluções de transporte flexível ou a pedido, como as rurais, de baixa ou muito baixa densidade, onde há "necessidades muito específicas porque [os utilizadores] são idosos", a académica sugere "quase uma solução individualizada, porque muitas vezes a utilização dos veículos maiores ou dos motoristas fixos é financeiramente muito cara", sendo o transporte flexível uma "parte do pacote das soluções" de mobilidade.
A académica alerta, porém, para o "perigo das modas" de se "ir buscar a solução do município ao lado" ou de anunciar uma "solução revolucionária".
"Nós temos que perceber que nenhuma destas soluções é revolucionária. E é mais importante a solução realmente responder à necessidade da meia dúzia de pessoas que precisam dela, do que tentar trazer para aqui uma solução tecnológica, super avançada, com pedido no telemóvel e depois as pessoas que realmente a utilizam, mal o telefone conseguem utilizar", vinca.
Cecília Silva nota ainda diferença na facilidade de obtenção de financiamentos entre soluções mais humanizadas e outras mais vistosas "em que se desenvolveu uma aplicação nova, se trouxe um autocarro elétrico", alertando que "às vezes as soluções não passam pela tecnologia".
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