Não há grande necessidade de explicação com base em conhecimento científico: afinal, quem não desacelera o carro para ver um acidente? Se se juntar aqui a inflamabilidade das redes sociais, o resultado é explosivo.
Foi o que aconteceu a 16 de julho, num concerto dos Coldplay em Boston, nos Estados Unidos. A equipa da banda norte-americana procedeu à normalíssima (e extremamente americana) ronda do ‘Jumbotron’, um momento em que os espectadores de eventos culturais em massa deste género têm hipótese de aparecer no grande ecrã para todo o recinto - normalmente -, para gáudio dos mesmos. Nesta noite, porém, as estrelas alinharam-se para um momento que fica para a história da ‘pop culture’ como um exemplo imaculado da muito comum “vergonha alheia”.
O Notícias ao Minuto pediu ajuda à psicóloga clínica Teresa Feijão para tentar racionalizar o fenómeno que tomou de assalto as redes sociais e as notícias.
families may have been divided but the world is united pic.twitter.com/d38kNEMAat
— FearBuck (@FearedBuck) July 20, 2025
Como é que um momento tão embaraçoso se tornou tão transversal?
"O interesse coletivo por este tipo de situações privadas deve-se, em grande parte, à proximidade emocional que envolve. A infidelidade é um tema universal, reconhecível e que toca feridas e/ou fantasias comuns a muitas pessoas — quer pela experiência direta, quer pelas histórias próximas ou pelo medo de que algo semelhante lhes possa acontecer", explicou a especialista.
O impacto de um momento assim, acrescenta Teresa Feijão, é amplificado "em circunstâncias invulgares e num espaço emocionalmente forte como um concerto".
Ignorando todo o contexto, aquele casal não merecia este nível de atenção - mas a internet falou. E as reações, notícias, brincadeiras, estratégias de marketing abriram um ‘tsunami’ guloso de 'engagement' e cliques impossível de não surfar.
A culpada reação do casal e a inocente reação de Chris Martin (“Ou estão a ter um caso ou são muito tímidos”) fizeram o trabalho que muitos estrategas de redes sociais não conseguem simular. "Há também um fascínio natural pelo que é 'revelado' sem filtros, o que cria uma sensação de excitação voyeurística, tornando este tipo de situação tão viral", completou a psicóloga.
Consequências muito reais para acontecimentos a brincar
Bastaram horas para que as identidades dos dois intervenientes fossem conhecidas. Nessa noite, era impossível abrir o X ou o TikTok e não ver o vídeo, pelo menos, três vezes no ‘feed’.
Nem três dias depois, o homem demitiu-se do cargo de CEO e a empresa abriu uma investigação interna. A mulher, responsável de recursos humanos na mesma empresa, está de “licença” indeterminada. Ambos, sem qualquer atenuante, enfrentam uma exposição pública sem precedentes, vendo um momento da vida privada eternamente ‘tatuado’ nos seus currículos online, com todas as consequências subjacentes. É isto que acontece após 90 milhões de visualizações (ainda a somar) globalmente.
"O impacto pode ser devastador (tal como foi, como já todos sabemos, neste caso). Mesmo que os protagonistas não sejam figuras públicas, é-lhes dado um palco onde perdem total controlo sobre a sua própria narrativa. Há uma exposição imediata e uma invasão profunda da intimidade que pode prejudicar a sua vida pessoal, profissional, gerar vergonha, humilhação, isolamento ou até reações traumáticas — especialmente se já havia fragilidade emocional envolvida", indicou Teresa Feijão.
© Teresa Feijão
Que tipo de impacto emocional pode ter este evento para os intervenientes? "A pressão social, os julgamentos rápidos e a falta de privacidade podem intensificar conflitos, comprometer a autoestima e dificultar qualquer tentativa de lidar com a situação em privado. Em casos assim, o sofrimento emocional pode não vir tanto da infidelidade em si, mas da forma como ela é exposta e consumida pelo olhar público", acrescentou.
Ocean Gate, Angela Chao: O julgamento público e a fragilidade humana
A chegada dos algoritmos, dizem os entendidos, mudou para sempre a percepção do mundo que nos rodeia, entrincheirando os internautas nas suas próprias fés ao mesmo tempo que os isola de todas as restantes - da diferença, da empatia, da aceitação. O ser humano, porém, necessita do grupo e este tipo de eventos globais, democratizados pela internet, concedem (ainda que por uns dias) algum sentimento de pertença. Mas esta explicação não é a única.
"Este tipo de reação revela algo sobre os mecanismos de defesa coletivos. Muitas vezes, o riso, o sarcasmo ou a indignação servem como formas de afastamento emocional: ajudam-nos a não sentir demasiado a identificação e a proximidade emocional. É mais fácil ridicularizar do que reconhecer que aquela dor podia ser a nossa", disse-nos Teresa Feijão.
"Também entra aqui o fenómeno da 'vergonha alheia', que ativa o desconforto ao vermos alguém exposto de forma tão crua — e que, em vez de gerar compaixão, muitas vezes desperta escárnio, julgamento e crítica, precisamente porque nos toca num ponto vulnerável".
O escárnio e até a menorização da morte (como aconteceu com o acidente da Ocean Gate ou de Angela Chao, ao volante de um Tesla), podem explicar-se de forma mais simples: as redes sociais são terreno fértil para o comentário irrefletido ou primário.
"As redes sociais facilitam respostas rápidas, reativas, onde há pouco espaço para a moderação e a contenção emocional. De certa forma, estas reações funcionam como um escape: permitem projetar frustrações e inseguranças, num cenário onde há um 'culpado' e um 'espetáculo público'. É humano, sim, mas também é um reflexo da nossa dificuldade atual em lidar com a complexidade emocional do outro — sobretudo quando ela nos obriga a confrontar com as nossas próprias fragilidades".
Os fenómenos sociais em torno deste tipo de acontecimento, às vezes em sentido contrário ao decoro, deixam a descoberto uma realidade que poderá tornar-se sufocante: se há uma câmara de filmar por pessoa, que hipótese tem qualquer pessoa de passar a vida inteira sem aparecer, pelo menos, uma vez na internet sem o saber? Numa outra perspetiva: até que ponto nos distraímos com deslizes alheios com medo de serem mostrados os nossos?
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