Um dia após a Polícia Judiciária (PJ) ter detido seis membros de um grupo de extrema-direita, incluindo um chefe da Polícia de Segurança Pública (PSP), a Comissão Europeia contra o Racismo e Intolerância (ECRI) divulgou um relatório sobre o racismo, discriminação, xenofobia, antissemistimo e intolerância em Portugal, no âmbito do Dia Internacional de Combate ao Discurso do Ódio.
No relatório, que mostra o resultado de um grupo de trabalho independente, recomenda-se às autoridades portuguesas que assegurem mais formação para as polícias tratarem dos incidentes e crimes de ódio.
Cinco anos após o último relatório, os investigadores lembram que em Portugal existem casos de violência motivada pelo ódio, que por vezes envolvem grupos neonazis. No entanto, os peritos acusam as polícias de, muitas vezes, não registarem as queixas e de serem poucos os casos que avançam para julgamento.
Polícias precisam de formação para lidar com racismo
Dos poucos processos que chegam à justiça, são ainda menos os que resultam em decisões judiciais, concluem os peritos, que recomendam a aplicação de medidas que melhorem as relações e a confiança entre a polícia e alguns grupos, como é o caso dos migrantes, negros, LGBTI ou os ciganos.
Além destes instrumentos, os peritos recomendam também que os agentes da polícia e os profissionais de justiça criminal frequentem programas de formação específicos para lidar com estas matérias.
Os investigadores dizem ainda estar preocupados com "o aumento do discurso de ódio online" e com um discurso inflamatório e que divide as pessoas que é utilizado por alguns políticos.
"Embora não existam dados oficiais e desagregados sobre incidentes de discurso de ódio em Portugal, vários relatórios credíveis de organizações da sociedade civil e outras instituições independentes apontam para um aumento acentuado do discurso de ódio no país, que parece visar predominantemente migrantes, ciganos, LGBTI e pessoas negras", refere a ECRI, órgão do Conselho da Europa.
Crimes de ódio aumentaram mais de 200% em 5 anos
Já de acordo com as Estatísticas da Justiça, da responsabilidade da Direção-Geral da Política de Justiça (DGPJ), os crimes de discriminação e incitamento ao ódio e à violência aumentaram mais de 200% nos últimos cinco anos - 2024 foi o ano com mais ocorrências.
O ano de 2000 foi o primeiro com registo de casos nas estatísticas oficiais. Nesse ano houve três casos registados, em 2005 já eram dez, em 2010 houve 15 e em 2015 contabilizaram-se 19. A partir daí, o aumento é constante, com registo de 25 crimes em 2016, 48 em 2017, 63 em 2018 e 82 em 2019.
Em 2020 as estatísticas contabilizam 132 crimes por discriminação e incitamento ao ódio e à violência, número que aumenta para 150 em 2021. Em 2022 foram registadas 270 ocorrências, 344 em 2023 e em 2024 o número chega a 421, o valor mais elevado desde que é feita esta contabilização.
Agente da PSP em grupo de extrema-direita, morte de Odair Moniz e agressão a Cláudia Simões: os casos em Portugal
Chefe da PSP entre detidos do Movimento Armilar Lusitano
Na terça-feira, a Polícia Judiciária anunciou que deteve seis pessoas "fortemente indiciadas pela prática dos crimes de infrações relacionadas com grupo e atividades terroristas, discriminação e incitamento ao ódio e à violência e detenção de arma proibida".
"A investigação resultou da deteção online de indicadores de manifestações extremistas por parte de apologistas de ideologias nacionalistas e de extrema-direita radical e violenta, seguidores de um ideário antissistema e conspirativo, que incentivava à discriminação, ao ódio e à violência contra imigrantes e refugiados", revelou a PJ sobre a operação Desarme 3D, acrescentando que os detidos são suspeitos de integrar o denominado Movimento Armilar Lusitano (MAL).
Entre os seis detidos, encontra-se um chefe da PSP colocado na Polícia Municipal de Lisboa, que terá sido transferido para esta polícia por ligação ao movimento de extrema-direita. A autoridade já abriu um processo disciplinar ao agente.
Após a detenção, o diretor nacional da PSP, Luís Miguel Carrilho, frisou que a lei é para ser cumprida. "Cumpra-se a lei - 'dura lex, sed lex' - a lei é dura, mas é para ser cumprida. Faça-se justiça. Temos o melhor relacionamento institucional com a Polícia Judiciária e com o Ministério Público. Há um processo em curso, como é natural todos são inocentes até prova em contrário e esperemos que seja feita justiça nesse caso", afirmou o responsável à Lusa, à margem do 151.º aniversário do Comando Distrital da PSP de Leiria.
Morte de Odair Moniz
Em outubro de 2024, o cabo-verdiano Odair Moniz, de 43 anos, morreu após ser atingido por dois tiros disparados por um agente da PSP, na Cova da Moura. O agente será julgado quase um ano após a morte, estando o julgamento previsto arrancar a 15 de outubro.
Segundo a acusação, o cabo-verdiano, residente no Bairro do Zambujal, tentou fugir da PSP e resistir à detenção, mas não se verificou qualquer ameaça com recurso a arma branca, contrariando o comunicado oficial divulgado pela Direção Nacional da PSP, segundo o qual o homem teria "resistido à detenção" e tentado agredir os agentes "com recurso a arma branca".
Em relação aos tiros, o primeiro terá sido disparado a uma distância entre os 20 e os 50 centímetros e atingiu a zona do tórax. Nessa altura, Odair ainda "permaneceu em pé", mas o agente da PSP disparou uma segunda vez, já a uma distância entre os 75 centímetros e um metro, atingindo a zona da virilha.
Agressão a Cláudia Simões
A 19 de janeiro, Cláudia Simões, luso-angolana, envolveu-se numa discussão entre passageiros e o motorista de um autocarro na Amadora pelo facto de a sua filha, à data com 8 anos, se ter esquecido do passe.
Chegados ao destino, o motorista decidiu chamar a polícia e, após alguns momentos de tensão, um agente decidiu imobilizar Cláudia Simões, junto à paragem do autocarro, após esta se recusar a ser identificada.
Cinco anos depois, em abril de 2025, Tribunal da Relação de Lisboa considerou provado, com recurso a prova testemunhal e a imagens de vídeo, que Cláudia Simões foi agredida no interior da viatura da PSP pelo agente Carlos Canha, "o que foi feito na presença e perante a inação dos coarguidos agentes da PSP, Fernando Rodrigues e João Gouveia".
Leia Também: Conselho da Europa quer racismo e discriminação LGBTI discutido na escola