Licenciou-se e fez um mestrado em Bioquímica, mas isso não o preenchia. Era quando pensava em viagens que João Amorim, mais conhecido como 'Follow The Sun', encontrava um sinónimo de felicidade. E foi esse o rumo. Tornou-se líder de viagens, mas é também fotógrafo e influenciador digital, partilhando, com milhares de seguidores, as suas aventuras e o seu olhar sobre o mundo.
Em 2023, tornou-se notícia quando criou o projeto 'Fundo da Aldeia' e comprou meia aldeia no Gerês, mas nesta entrevista ao Notícias ao Minuto é sobre a sua recente viagem ao Afeganistão - um país mergulhado numa crise profunda - que falamos.
O fotógrafo admite que foi surpreendido "pela negativa", sobretudo, depois de passagens pelo Iraque ou pelo Iémen, onde a realidade se mostrou melhor do que a expectativa. Na verdade, o mesmo não aconteceu no país que voltou ao controlo do regime talibã em 2021.
João Amorim descreve um país "instável, "estupidamente pobre", onde os cidadãos não concordam com as medidas "únicas e opressivas" do regime, mas onde reside a "esperança" porque, pelo menos, não se vive uma guerra onde o sangue jorra diariamente.
Conta-nos o que viu, o que é ou não verdade, fala-nos sobre o momento em que o português Slow J se fez escutar - num país onde não se pode ouvir música - e relata o momento em que, admite, sentiu que podia "morrer", quando foi "perseguido por um talibã".
Já estive no Iraque, já estive na Arábia Saudita, tinha estado no Iémen e, depois, o Afeganistão acabou por me surpreender pela negativa
João, esteve recentemente numa viagem ao Afeganistão e partilhou, como já é habitual, essa jornada com os seus seguidores. Antes de mais, porquê o Afeganistão? O que o levou a embarcar nesta aventura?
Há muito tempo que tenho curiosidade por este tipo de países menos conhecidos, não só no aspeto do turismo, mas também do ponto de vista cultural. Menos compreendidos, de certa forma, porque sei que, normalmente, a ideia que as pessoas têm - que eu próprio tenho, mesmo depois de ter já viajado por muitos países do género - é sempre diferente da realidade. Uma pessoa realmente não sabe como é que são as coisas, a não ser que vá ver e, mesmo assim, tem uma ideia superficial daquilo que acontece no país. E, de facto, já estive no Iraque, já estive na Arábia Saudita, tinha estado no Iémen mesmo antes de ir para o Afeganistão… E, depois, o Afeganistão até acabou por me surpreender pela negativa.
Como assim?
A minha experiência no Iraque foi incrível, a minha experiência no Iémen também. Embora saiba que as coisas não são incríveis nesses países, a minha expectativa era muito pior do que aquilo que a realidade foi. Senti que as pessoas, por exemplo no Iémen, tinham - ou pelo menos tive essa perceção – mais liberdade do que aquela que eu achava que tinham. Ou seja, fui tendo experiências positivas de acordo com a expectativa que tinha. E, no Afeganistão, estava na esperança de que as coisas estivessem um bocado melhores. E não senti isso, na verdade.
Já lá vamos, porque é interessante abordar essa perspetiva. Mas gostava de perguntar, primeiro, como é que foi o percurso até lá? Sabemos que uma ida ao Afeganistão não é planeada como qualquer outra viagem. Como é que foi feito esse planeamento?
Já há muitos anos que andava assim meio doido a perceber quando é que podia ir e conheço pessoas no Instagram e pessoalmente que foram ao Afeganistão antes de os talibãs voltarem a controlar o país. Na verdade, agora é mais seguro do que antes porque o país parece mais estável e, antes, era impossível viajar de cidade para cidade. Portanto, andava sempre a tentar perceber como é que podia concretizar isto. Entretanto, apercebi-me de uma agência de viagens de um amigo meu, que é português, que criou lá uma parceria com um guia local e convenceu-me a ir. Basicamente, ele tinha ido ao Afeganistão, há uns anos, conheceu este guia, gostou muito dele, e juntos criaram uma agência de viagens para o Afeganistão, a 'Darya Expeditions'. Então, foi relativamente fácil com a ajuda deles. Tivemos de voar para o Dubai, tivemos um ‘fixer’ para tratar do visto, mas em duas ou três horas já tínhamos o visto connosco, e depois do Dubai fomos para o Afeganistão.
Então, todo o percurso foi sempre por via aérea, certo?
Sim. É impossível fazer essas coisas sozinho. Até porque, depois, a primeira coisa que fazes quando chegas ao Afeganistão é ter de ir a um dos gabinetes turísticos dos talibã e dizer 'vou fazer isto, vou fazer aquilo' e eles têm de aprovar o teu roteiro. E, sempre que chegas a uma cidade nova, tens de fazer a mesma coisa. Ou seja, há muitas burocracias porque eles, neste momento, estão focados em manter a nossa segurança, e, para isso, querem saber onde é que vamos, o que é que vamos fazer, para perceberem se está de acordo com aquilo que permitem que aconteça.
Percebemos que se disséssemos que éramos casados havia menos questões
Já que falamos dessa burocracia e desse controlo, partilhou esta jornada com outra criadora de conteúdos e também fotógrafa, a Marta Giardas Duran. Numa primeira publicação, nas redes sociais, contou que o guia vos explicou que se fossem casados as coisas seriam mais simplificadas e vocês, numa espécie de brincadeira, avançaram com um casamento encenado. Isto aconteceu mesmo ou foi só uma coisa que contaram no Instagram?
Nós, a certa altura, falámos com ele e tínhamos a opção de ficar em quartos separados e ficaria muito mais caro. Normalmente, as viagens para estes países são viagens caras porque não têm muito turismo. Então, se ficássemos no mesmo quarto seria mais barato. E isso só era possível no Afeganistão se fôssemos casados. Além disso, ao falar com o guia, também percebemos que se disséssemos que éramos casados havia menos questões. Não quer dizer que não pudéssemos fazer a viagem sem ser casados, mas seria sempre mais simples as pessoas perguntarem se éramos um casal e nós dizermos que sim.
Sim, culturalmente.
Claro, é isso. Depois, a sessão fotográfica e o vídeo que fizemos foi um pouco porque pensámos: e se nos pedirem provas? E foi assim que aconteceu.
E alguma vez vos chegaram a pedir essas provas?
Não, nunca nos pediram fotografias, mas perguntavam-nos sempre: ‘Ah, e filhos? Quando é que vêm filhos? E são casados? Há quanto tempo?’. É o tipo de conversa que eles sabem ter. Mas nunca tivemos de mostrar nada.
Há pouco, disse que foi uma viagem longa. Quantos dias é que ficaram lá?
Inicialmente, o nosso plano era ficar 20 dias. Acabámos por ficar 17.
Os talibãs estavam muito mais controladores do que o normal. E nós sentimos, desde o início, que a nossa viagem estava a ser sabotada
Porque acabaram por passar por uma situação que não foi tão positiva ou por qualquer outro motivo?
Quando passámos por uma situação bastante negativa – e partilhei esse vídeo, em que fomos perseguidos por uma pessoa, por um talibã – já tínhamos decidido sair do país mais cedo.
Porquê?
É um país muito instável e as regras que são impostas às pessoas e aos turistas também mudam com muita facilidade. A altura em que estávamos lá coincidiu com uma altura do feriado ‘Eid Mubarak’, que é quando os muçulmanos vão até Meca. Eles celebram esse feriado também e nós estávamos todos entusiasmados porque pensámos, ‘olha que fixe, vamos estar no Afeganistão numa altura de festa, de feriado, e vamos poder participar nas celebrações e ver o que é que acontece’. Não, foi precisamente o contrário, talvez por ser uma altura crítica em que, não sei, podiam existir ataques contra os talibãs, tribos locais que não concordam com eles e que querem promover instabilidade, muita gente na rua, muita gente das aldeias que vai às cidades e nunca se encontrou com turistas… Portanto, os talibãs estavam muito mais controladores do que o normal. E nós sentimos, desde o início, que a nossa viagem estava a ser sabotada. Por exemplo, a Marta foi impedida de ir a um lago por uns talibãs religiosos. E, espontaneamente, eles estão na rua e impedem as pessoas de ir, mas é raro. Duas semanas a seguir, o nosso guia estava lá com um grupo e, para além de estarem turistas, estavam também locais e mulheres no lago.
Ou seja, as coisas mudam do dia para a noite e tivemos azar. Talvez por ser o feriado, a nossa viagem estava sempre a ser sabotada. Nós íamos fazer um ‘trekking’, eles não quiseram que fizéssemos, disseram que era por nossa segurança, íamos visitar um orfanato, não quiseram que visitássemos, mas aí já não seria por nossa segurança, era mais porque queriam controlar. Íamos visitar uma escola, não visitámos, íamos fazer campismo, não fizemos, ou seja, já estávamos um bocado fartos desse tipo de opressão. Percebemos, vamos a uma cidade nova e vamos fazer sempre as mesmas coisas, vamos visitar uma mesquita, vamos visitar o mercado… Estávamos a ficar frustrados e pensámos ‘vamos embora mais cedo, já vimos o suficiente, já sentimos que vimos o suficiente’ e foi por isso que decidimos vir embora.
O guia aproximou-se de nós e estava com uma atitude estranha. Depois, vira-se e diz: ‘Vocês estão a ser seguidos, temos de ir, agora!’. Fomos perseguidos por um talibã
Falou sobre esse episódio de terem sido perseguidos por um talibã. Pode partilhar um pouco mais? Como é que perceberam que estavam a ser perseguidos e onde foi?
Foi em Kandahar, que é uma cidade no sul do Afeganistão que é a capital dos ‘Pashtuns’ (‘Pastós’), a tribo da qual surgiram os talibã. Nem todos os ‘Pashtuns’ são talibã, aliás, diria que a maior parte não deve ser, mas quase todos os talibãs são ‘Pashtuns’, porque eles nasceram nessa cidade há 20 e tal anos. E, de forma geral, são a tribo mais conservadora, porque são muçulmanos sunitas, de uma vertente sunita que é mais conservadora do que o normal. Por isso é que há uma série de regras que os talibã impõem na sociedade que não têm nada que ver com o Islão… Então, estávamos nesta região e tínhamos ido dar uma volta de carro pelas aldeias e percebemos logo que não éramos muito bem-vindos. Por exemplo, os cemitérios das aldeias estavam todos cheios de bandeiras talibã, e pelas crianças... Estavam muitas crianças, muita gente por causa do feriado. Aquelas crianças cresceram a vida toda a ouvir que nós somos o inimigo do Islão, a nossa cultura, as nossas ideologias, a nossa forma de pensar.
Uma adoração aos talibã, não?
Sim, sim, é normal, são os pais deles, os tios deles, é o que aprenderam... E a verdade é que o Afeganistão esteve em guerra durante 40 anos e os talibã são os ‘salvadores’ que libertaram o país da guerra. Então, já sentimos que as coisas estavam bem diferentes do resto do Afeganistão, porque, antes, não sentimos essa tensão e não sentimos que éramos indesejados, bem pelo contrário, mesmo por outros ‘Pashtuns’ que viviam noutras regiões menos conservadoras. Mas, como essa volta pelas aldeias estava a ser um bocado desagradável, pensámos voltar para Kandahar e ir ao mercado. Já tínhamos ido no dia anterior ao mercado, tinha sido bom.
Voltámos ao mercado e o nosso guia até disse ‘andem pelo mercado, tranquilamente, eu fico no carro à vossa espera, vou estando atento, só para, quando quiserem voltar, poderem voltar’. Nós gostamos disso, de estar tranquilos, e foi o que fizemos. Contudo, a certa altura, ele aproximou-se de nós e estava assim com uma atitude estranha, mas não liguei. Depois, vira-se e diz ‘temos de ir’. ‘Mas acabámos de chegar, porque é que temos de ir?’, perguntei. E ele respondeu: ‘Vocês estão a ser seguidos, temos de ir, agora!’. Ok… Porque, até então, tínhamos tido outros momentos de tensão, momentos desconfortáveis, mas ele estava sempre mais ou menos tranquilo. E, ali, não estava nada tranquilo e foi aí que percebemos que havia alguma coisa realmente séria. E, depois, o vídeo retratava mais ou menos o que é que aconteceu: nós entramos para o carro, fomos perseguidos por um talibã.
Durante algum tempo ou foi breve?
Durante 15 minutos mais ou menos. E nós estávamos cheios de medo porque percebemos que o guia estava com medo e o condutor também. Eu, a certa altura, até digo ‘porque é que não vai mais depressa?’, porque ele estava a andar mesmo muito devagar, mais devagar do que o normal.
E disse ‘liga a alguém’ e ele respondeu: ‘não, se ele descobre que estamos a ligar a alguém, pode ser muito grave e pode começar a disparar’
Talvez para também tentar disfarçar...
Pois, mas acho que estava a disfarçar demais, estava a andar mesmo muito, muito, muito devagar. Mas eles estavam realmente com medo e diziam ‘não, não, temos de ir devagar porque se ele suspeitar de alguma coisa não sabemos como é que vai reagir’. E eu até disse ‘liga a alguém’. Porque, no dia anterior, tínhamos estado no gabinete do turismo dos talibã lá e eles mostraram-se de acordo com a nossa presença. Portanto, se ele ligasse, alguém podia fazer alguma coisa em relação àquela pessoa. Mas ele disse ‘não, se ele descobre que estamos a ligar a alguém, pode ser muito grave e pode começar a disparar’. E pronto. Seguiu-nos durante esses 15 minutos e, a certa altura, deixou de nos seguir. E, por acaso, é impressionante como é que eles devem estar tão habituados a este tipo de coisa, porque o guia disse: ‘ele deixou de nos seguir, mas ele vai aparecer mais à frente, de certeza’.
E apareceu?
E apareceu outra vez mais à frente. Passados para aí cinco ou dez minutos, estava ele parado a olhar para nós. Seguiu-nos mais um bocado e, depois, passámos um ‘checkpoint’ muito grande e ele lá deixou de nos seguir.
E perceberam qual seria o objetivo dele?
Não sabemos. Na verdade, não sabemos. E o guia não quis estar a ligar a ninguém porque estava com medo do que pudesse acontecer, sermos chamados para ser interrogados… e nós queríamos era ir embora. Mas o que eu acho é o seguinte: os talibã estiveram 20 anos em guerra com os Estados Unidos e, antes disso, governaram o país durante algum tempo e meteram na cabeça das pessoas que o Oeste é o inimigo do Islão, nós somos o inimigo do Islão, os nossos valores. E, de repente, eles conquistam o país e, afinal, nós somos bem-vindos. Há aqui uma incoerência. E acredito que existem pessoas dentro dos próprios talibã que são muito mais conservadoras do que os talibã são agora. Porque as pessoas estão mais satisfeitas com este regime talibã, porque eles são muito diferentes daquilo que eram há 20 anos. Não matam mulheres na rua, não apedrejam mulheres na rua. As mulheres não têm de andar sempre com a cara tapada...
Em Cabul há muito mais mulheres na rua, há muito mais mulheres mais liberais, com a cara à mostra. Mas, depois, em sítios mais pequeninos, mais conservadores, notava-se logo a diferença
Depois da retirada militar dos Estados Unidos e da tomada de Cabul pelo regime talibã, em 2021, começámos a ouvir diversas organizações, nomeadamente a ONU, a relatar que aumentaram as restrições mesmo quando disseram que não o fariam. Já sabemos que há restrições no acesso das mulheres ao espaço público, à educação, às oportunidades de emprego, restrições ao vestuário. O que é que vivenciou?
Nesse aspeto, achei que ia ser muito pior, pelo menos visivelmente, do que aquilo que era. Havia muitas mulheres na rua, havia mercados que eram mais para as mulheres, onde se viam muito mais mulheres. E vimos mulheres de burca, mulheres sem burca. As mulheres tinham sempre o cabelo tapado, mas com o cabelo mais à mostra ou menos à mostra, com a cara com maquilhagem ou sem maquilhagem. No fim de contas, vimos mesmo muito mais mulheres sem burca do que com. E as mulheres com burca, provavelmente, eram só mulheres ‘Pashtuns’, ou porque são mais conservadoras, ou porque a família é mais conservadora, ou porque alguém lhes exige. Em Kandahar não, depende muito da região. Nesta região vimos pouquíssimas mulheres e quase todas as mulheres que vimos tinham burca, a não ser uma.
Ou seja, notou uma grande diferença no quotidiano de cada cidade? Por exemplo, entre Cabul e outras regiões mais à volta.
Sim, sim, sim. Em Cabul há muito mais mulheres na rua, há muito mais mulheres mais liberais, com a cara à mostra. Mas, depois, nesses sítios mais pequeninos, mais conservadores, notava-se logo a diferença.
E na questão da educação? Só podem ir à escola até determinada idade.
O que acho sobre isso é que as pessoas que têm possibilidades continuam a ter aulas. Privadas, online. Portanto, é muito provável que a maior parte das mulheres que já teriam aulas antes, continuem a ter aulas agora. Porquê? Porque o maior problema do Afeganistão, na minha perspetiva, neste momento, não são essas restrições, é o facto de ser um país que é estupidamente, extremamente, pobre. Um país que esteve em guerra durante tantos anos. Há lá uma região, por exemplo, que tem não sei quantos milhares de hectares de bombas…
Campos minados.
Campos minados, sim. O Afeganistão é tipo o fim do mundo. Enquanto estávamos a viajar de cidade para cidade, de carro, vimos centenas, milhares de miúdos, crianças com cinco, seis, sete anos, a conduzir rebanhos de cabras, que ainda são nómadas, que vivem de sítio em sítio, muitas mulheres a trabalhar no campo. Mas, ou seja, estas mulheres que provavelmente trabalham no campo, estes miúdos que são pastores de cabras ou de ovelhas, não iriam à escola de qualquer das formas, porque não têm possibilidade ou tempo para ir à escola.
Tem a ver com o extrato social.
Sim, é isso. Acho que, de facto, este tipo de opressões e este tipo de leis, no final de contas, vão afetar pouca gente, só as pessoas nas cidades, e mesmo assim nem todas. Embora estejam obviamente desagradados com elas. Mas, o problema do Afeganistão é muito mais à frente do que isso.
Em Cabul víamos muitos miúdos num rio nojento, que cheirava muito mal, um esgoto, basicamente, a apanhar lixo para vender
Quando fala em pobreza extrema, qual foi a situação que mais o chocou?
Não sei... infelizmente, se calhar, não chocou porque já estou habituado. Mas, em Cabul víamos muitos miúdos num rio nojento, que cheirava muito mal, um esgoto, basicamente, a apanhar lixo para vender. Eram crianças pequeninas, todas sujas. Estes miúdos, claramente, viviam uma vida muito infeliz. É um país que está muito fustigado pelos anos infindáveis de guerra e é por isso que também eles estão de uma forma geral satisfeitos com o estado do país agora, por muito que não concordem com quase nada daquilo que é imposto pelos talibãs. Mas, pelo menos, não estão em guerra e as pessoas não estão a morrer.
E quando falamos de restrições à conduta dos cidadãos em geral? Não podem jogar xadrez, ouvir música, até há um vídeo engraçado em que meteu Slow J a tocar no carro com o guia. Como é que eles veem estas proibições?
Sim, eles têm muito a vida privada. E, no privado, acabam por fazer as coisas que não podem fazer em público. E se há uma coisa boa em relação ao Afeganistão é eles não terem proibido as redes sociais. Portanto, as pessoas conseguem mais ou menos, informar-se e usar as redes sociais até para divulgar crimes. Ou seja, o meu guia dizia que os talibã não podem ser os mesmos que há 20 anos ou os cidadãos partilhavam tudo nas redes sociais e eles estavam lixados porque nunca seriam reconhecidos internacionalmente...
Havia uma notícia que dizia que as mulheres não podiam falar umas com as outras, isso é mentira
Como um governo legítimo. E destas restrições que estamos a falar, o que é que confirma que é ou não verdade? Ou, pelo menos, que não pareceu que fosse verdade.
É quase tudo verdade, mas havia uma notícia que dizia que as mulheres não podiam falar umas com as outras, isso é mentira. Ouvi muitas mulheres a falar umas com as outras. Que não podiam sair de casa também, isso é mentira.
E também se fala muito em algumas restrições quanto a tirar fotografias e fazer vídeos. Tirou imensas fotografias e fez imensos vídeos, acha que aconteceu porque era turista?
Não, não, eles também tiravam fotografias e faziam vídeos. É assim, de uma forma geral, neste tipo de países, não é bem visto fotografar as mulheres. Quando estava a fotografar uma multidão e apontava a câmara para cima, se tivesse uma mulher, ela escondia-se logo. Mas isto é cultural. Elas não querem aparecer, seja porque lhes impuseram isso ou porque se habituaram a isso, mas não gostam de aparecer.
Também há a questão de terem de estar sempre acompanhadas por um ‘mahram’, ou seja, um acompanhante masculino. Pelo que conta, não parece que seja regra.
Não, não. Vimos muitas mulheres sozinhas. É claro que em teoria elas só podem sair de casa com a autorização do homem. Mas, na prática duvido que isso seja assim.
No início da nossa conversa recordou a ida ao lago Band-e Amir. A Marta chorou imenso por não poder fazer a visita, um pouco, como disse, porque naquele dia decidiram assim. O que se passou?
É isso. Nessa altura, lá decidiram que não deixavam as famílias irem ao lago. Talvez por se estar a aproximar o feriado ou porque simplesmente gostam de fazer esse tipo de chantagem com as pessoas. É difícil de dizer porque, na verdade, não sabemos. E no dia a seguir, passámos por essa mesma estrada para ir para outro sítio qualquer, e não estava lá ninguém. Parece muito aleatório, sabe?
Já falou da experiência negativa que tiveram com os talibã, mas também partilharam uma experiência positiva em que tiveram a oportunidade de falar com eles.
Nós falámos com poucos talibãs. Primeiro, porque, estando com a Marta e na forma de eles verem as coisas, é mais difícil abrirem-se e, enfim, talvez seja por respeito… Depois - e isso foi algo que também nos deixou chateados e tristes, porque queríamos ter mais esse tipo de interações - , os talibã foram avisados de que não era suposto interagirem connosco nem filmarmos nada com eles.
O que não acontecia antes. Se formos ver outros criadores de conteúdo dos Estados Unidos, por exemplo, vê-se conteúdo com os talibã. Mas o que é que aconteceu? Um desses criadores de conteúdo era de uma página chamada ‘OnlyFans’, uma mulher, uma ‘pornstar’. E ela, não sei como é que teve coragem, foi ao Afeganistão, andou por lá a fazer fotografias com talibãs, como qualquer outro turista fazia na altura, e, depois, publicou. Só que aquilo foi super ofensivo para os talibã, e então, eles foram obrigados a deixar de estar presentes neste tipo de vídeos com medo que coisas desse género acontecessem. Ou seja, o governo talibã não quer ver talibãs em vídeos de uma atriz pornográfica. Eram vídeos normais, como um turista normal. Então, estavam muito mais fechados. Convidavam-nos para tomar um café, mas não nos deixaram filmar.
A interação que tivemos com esses talibãs [que foi partilhada nas redes sociais] foi muito mais tranquila, eles eram amigos e conhecidos do nosso guia e eram super bem dispostos, notava-se que estavam mesmo à vontade. Eram mais velhos, portanto, deviam ter algum poder. E parecem bem tranquilos, são super simpáticos, mas andaram a lutar nas montanhas contra os Estados Unidos durante muitos anos. A uma certa altura um deles disse-me que tinha um filho com dois anos e já era velho, eu disse-lhe: ‘mas tu já és velho, só tens um filho com um ano?’. E ele começou-se a rir, ‘eu estive vinte anos nas montanhas, achas que alguma mulher queria vir para a montanha comigo para ter filhos?’. Pronto, e começaram-se todos a rir.
Outro dos talibãs, o meu guia até disse que ele era super perigoso, era da inteligência talibã. Estávamos a falar com ele sobre estas coisas do dia a dia e ele disse que a filha tinha 17 anos quando os talibã entraram no poder e queria ir para a universidade e, infelizmente, agora não pode. Ou seja, eles não concordavam com isso, por exemplo.
E acha que, realmente, não concordavam ou era propaganda? Como há pouco falámos, os talibã não são reconhecidos como um governo legítimo do Afeganistão pela maior parte dos países. Não pode ser um discurso já pensado e ensaiado para os turistas?
Acho que não, acho que não. Naquele caso, eles não têm vergonha de dizer aquilo que acham. Aliás, vou contar outra experiência, que nem publiquei. Estávamos numa mesquita e estava a tirar fotografias e, como estava com as vestes deles, vieram ter comigo uns miúdos, que eram talibã, a pedir para tirar fotografias e a falar. Como não entendia, chamei o guia e aí é que eles perceberam que era turista. Mesmo assim, pediram para tirar fotografias, tirei-as e, depois, a certa altura, a Marta aproximou-se e eles deram a entender que queriam que ela se afastasse. Estávamos num sítio público, estavam eles, jovens, mas estava mais gente à volta. E depois, passado cerca de uma hora, foram ter com o guia quando estava num lugar mais tranquilo e disseram-lhe para pedir desculpa à Marta: ‘Nós não a queríamos ofender, nem queríamos fazê-la sentir-se mal, não temos problema nenhum com ela, mas estavam ali outras pessoas e só não queríamos problemas para nós’. E a Marta nem lhes disse nada. Então, as pessoas, de uma forma geral, - a não ser em sítios específicos - concordam com algumas coisas, mas não com as mais únicas e opressivas deste sistema e têm esperança, porque as pessoas com quem falámos disseram que isto tem de mudar, eles não têm impostos, isto tem de mudar.
E acha que essa mudança se vai refletir de que forma num país que já passou por uma guerra civil, tão marcado por ocupações?
Creio que os talibã têm um trunfo com que vão querer jogar na comunidade internacional – se vocês nos reconhecerem, deixamos as mulheres irem à escola, se libertarem as nossas contas, fazemos outra coisa qualquer. Por exemplo, há mulheres médicas, há mulheres enfermeiras, eles deixam que as mulheres sejam médicas e enfermeiras, há mulheres que têm uma série de outras posições, não todas, mas há médicas e enfermeiras.
Isso não será por necessidade?
Sim, mas, então, porque é que que não deixam mais mulheres formarem-se como médicas e enfermeiras? E, depois, já passaram quatro anos desde que tomaram o poder. Para nós, é muito, mas para eles é pouquíssimo. O nosso guia dizia sempre ‘só passaram quatro anos. Ainda falta muita coisa, as coisas estão a melhorar aos poucos e ainda só passaram quatro anos’. E eu só pensava que quatro anos é muito, mas para eles é pouco. E via outras coisas que os talibã estavam a fazer como coisas boas. Os Estados Unidos estiveram lá, elegeram um governo sombra, por assim dizer, e não faziam nada. Não investiram em infraestruturas, não havia estradas… Os talibã estão a fazer todo esse tipo de coisas que faz com que as pessoas – não é gostar da mudança - tenham esperança.
No final de contas, estas viagens são muito duras, muito exigentes. Porque estás sempre triste
No fim, o que é que fica desta viagem?
Surgiu, teve o efeito que queria que tivesse, que era fazer com que saísse um bocado da minha bolha e fosse ao encontro de outras realidades. E para também me ajudar, de certa forma, a ter um bocado mais de consciência, mais empatia pelas outras pessoas que vivem em lugares como este. Mas, no final de contas, estas viagens são muito duras, são muito exigentes. Porque estás sempre triste, não é? A ver este tipo de coisa acontecer e a perceber a realidade das coisas. É triste. Depois, também é muito duro partilhar, porque se recebe muita…
Crítica?
Sim, muita gente preconceituosa… que vê estas mensagens, que vê estes vídeos. Honestamente, já tive uma ideia mais romântica sobre as minhas partilhas, de achar que se as pessoas virem vão olhar para a pessoa que está do outro lado, para as crianças e ter empatia. Mas eu acho que, nesta altura, o que acontece é que as pessoas vão ficar mais polarizadas. Ou seja, quem concordar comigo vai concordar mais comigo, quem discordar de mim, vai discordar mais de mim. O mesmo vídeo, vai ter os dois efeitos. Uma pessoa vai ver aquela criança e vai pensar, coitadinha da criança, não tem culpa nenhuma. E outra vai ver o mesmo vídeo e pensar ‘aquelas pessoas são todas iguais’.
‘São todas terroristas’, não é?
É. Eles estão a vir para cá…. E depois é engraçado ver. Eu, pelos comentários que vou recebendo, vou percebendo um bocado quais são os temas em voga. Há uns meses, estava na Índia e o pessoal comentava, ‘Força, Chega!’. E, agora, comenta ‘Levem a Mariana Mortágua para aí’. É engraçado porque o que eu sinto é que o eleitorado do Bloco de Esquerda meteu a Mariana Mortágua para um canto e agora são os militantes do Chega que estão estão a puxar por ela e a metê-la no pedestal para falar mal… Não é assim tão engraçado porque é muito exigente, mas dá para perceber um pouco estas dinâmicas nas coisas que vão acontecendo nos meus comentários.
Voltaria ao Afeganistão?
Não. Por agora, não.
Por agora ou sente que não quer mesmo voltar?
Se as coisas não mudarem, não quero voltar.
E porquê?
Porque, no final de contas, o tipo de viagem que nós fizemos pode ser um bocado perigosa.
É demasiado risco...
Sim, sim. E nós sentimos esse risco. Percebemos que, num instante, corres riscos sérios.
Sentiram: ‘eu posso morrer aqui’?
Sim, sim. Naquele momento sentimos isso. Naquele momento em que fomos perseguidos pelo talibã, sentimos isso. Mas, aqueles que queiram ir ao Afeganistão, que vão. Fazer um ‘tour’ normal, de menos dias, de cinco, seis, uma semana…
Era assim que queria rematar. Se alguém ler esta entrevista e sentir que quer ir ao Afeganistão, é algo que recomenda?
Se forem com um objetivo menos investigativo do que nós, por assim dizer, fazer uma viagem mais normal, irem com o nosso guia, acho que é uma boa ideia. Recomendo porque acho que temos todos a ganhar com o facto de nos apercebermos do mundo em que vivemos, porque não é só o nosso quadradinho e, portanto, eu diria que sim. Mas, neste momento, eu fiz a experiência que queria fazer e não quero voltar ao Afeganistão.
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