Para muitas pessoas a aplicação de mensagens encriptadas Telegram já se tornou sinónimo de partilha de imagens de raparigas e mulheres sem consentimento, mas um novo caso na China está a ganhar novas proporções e a indignar os internautas.
Isto porque um grupo de conversa na aplicação - com o nome MaskPark Tree Hole Forum - divulgou várias imagens de mulheres a centenas de milhares de utilizadores na conversa, com as hashtags relacionadas a ultrapassarem os 270 milhões de visualizações nesta terça-feira, dia 29, na rede social chinesa Weibo.
A existência do grupo na Telegram começou por ser reportada pelo jornal estatal Southern Daily, com a Reuters a também ter publicado uma reportagem sobre o tema. Ao que parece, as fotografias foram partilhadas por utilizadores e dizem respeito a imagens privadas das familiares bem como das atuais e ex-namoradas. Alegadamente, as imagens foram captadas não só em privado, como também em outros locais como casas de banho públicas.
“O meu ex-namorado tirou fotografias em segredo de mim enquanto tínhamos relações sexuais, partilhou as minhas fotografias privadas no grupo sem a minha permissão e promoveu as minhas contas nas redes sociais”, contou ao meio de comunicação chinês uma das vítimas, que decidiu permanecer anónima.
Serve recordar que, apesar de a China ter leis rígidas no que diz respeito a conteúdos obscenos ou considerados pornográficos, com muitos internautas chineses a recorrerem a redes virtuais privadas (VPNs) para conseguirem aceder a conteúdo bloqueado no país ou a plataformas proibidas - como é o caso da Telegram.
No caso da Telegram, a empresa já se pronunciou oficialmente sobre o caso e afirma que a partilha de conteúdo pornográfico não consensual é estritamente proibido pela aplicação. Sabe-se que o grupo onde as imagens foram partilhadas foi encerrado, ainda que continuem ativos grupos mais pequenos que continuam a partilhar estas imagens.
“A partilha não consensual de pornografia é explicitamente proibida pelos termos de utilização da Telegram e é removida sempre que é descoberta”, pode ler-se no comunicado da Telegram partilhado com a Reuters. “Os moderadores vigiam de forma proativa partes públicas da plataforma e aceitam denúncias de forma a remover milhões de conteúdos perigosos todos os dias, incluindo a pornografia não consensual”.
"Normalização do discurso de ódio contra as mulheres"
Recordar que também Portugal foi assolado este ano por escândalos com a partilha de fotografias e vídeos íntimos através da Telegram, com académicos, ativistas e diferentes associações a defenderem uma uma intervenção política na machosfera - que, dizem, promove a violência 'online' sobre mulheres.
"Não há nada de normal num grupo de Telegram em que se partilham fotos de raparigas e mulheres sem consentimento, se partilham moradas e muitas vezes se organizam ataques sexuais concertados. É isso que acontece nestes grupos. Isto é conhecido. É de uma irresponsabilidade tremenda que não estejam todos os partidos políticos alinhados e na fila da frente para combater esta realidade", censura Paula Cosme Pinto, ativista pela igualdade de género.
Perante a "normalização do discurso de ódio contra as mulheres", importa "que a lei faça o seu trabalho" e "o que ainda não é punido por lei tem de passar a ser", algo que tem de se somar à educação para a igualdade e sexualidade.
Inês Marinho, fundadora da Associação Não Partilhes, defende "reformas na lei" para proteger as vítimas com "penas mais severas", impedindo o acesso à Internet de "pessoas condenadas ou em processos de denúncia por crimes cometidos 'online'".
Maria João Faustino, especialista em violência sexual, pede a "responsabilização" das plataformas.
"Basta procurar qualquer coisa, até relativamente inócua, mas ligada ao universo masculino, para que o algoritmo ofereça um crescendo de conteúdos cada vez mais extremados", conta.
Para a especialista, "é muito fácil culpar os jovens e as famílias, como se coubesse unicamente às famílias responder a isto", mas estes são "problemas mais amplos e há responsabilidades coletivas" às quais a sociedade se tem furtado.
O problema é social e precisa de "intervenção preventiva", nomeadamente de "educação para a sexualidade e igualdade desde muito cedo".
A sociedade permitiu que "a misoginia galopante não fosse tratada devidamente nas escolas, com políticas públicas" e homens e rapazes "são socializados numa cultura que promove a violência contra as mulheres, que se glorifica na pornografia, nos videojogos ou no entretenimento", lamenta.
Diana Pinto, da Plataforma Portuguesa para os Direitos das Mulheres, repara que a pornografia, "incentivada nos fóruns onde se promove o ódio contra as mulheres", é um "dispositivo de socialização onde se aprende que a violência é excitante, que o consentimento é irrelevante e o prazer das mulheres é secundário ou inexistente".
O resultado são "novas gerações com ideias profundamente distorcidas sobre intimidade, consentimento, prazer mútuo e igualdade".
Para a Plataforma, há "um problema estrutural que não se resolve apenas com a alteração penal". É preciso "a desconstrução da cultura da violência, dos estereótipos sexistas e de género", um "trabalho mais lento, mas cada vez mais urgente".
O problema "é político", assegura Tiago Rolino, jurista, gestor de investigação e ativista.
"Não só é político, porque precisamos de políticas públicas robustas que alterem a situação, mas porque o pessoal é político e tudo o que fazemos tem uma consequência em todos nós", analisa.
Educar, criminalizar e criar uma definição da violência 'online' é o que sugere Inês Amaral, investigadora do Observatório de Masculinidades do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.
Nos casos das vítimas de violência sexual 'online', é "muito difícil chegar a uma condenação justa", reconhece Joana Sales, da UMAR - União de Mulheres Alternativa e Resposta. "É raríssimo. Com o anonimato e os perfis falsos é difícil provar quem fez, quem partilhou. E, uma vez 'online', fica para sempre".
A vice-presidente da FEM - Feministas em Movimento, Sandra Cunha, pede "regulação e limite" para as plataformas, considerando que "em algum momento este tema tem de estar na agenda política", nomeadamente na da União Europeia.
Defende ainda a "educação para a cidadania, a igualdade, o respeito", que também está sob constante ataque por parte da extrema-direita.
"O problema da ciberviolência nas escolas é uma coisa impressionante. Não há uma escola em que não haja casos que tomam proporções enormes num instante", revela.
"Na rua, as pessoas não podem dizer o que entendem a outra pessoa. É crime, é discurso de ódio. Então, na internet também não podem", sublinha.
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