Foi num estado de permanente medo e com bombas a caírem como barulho de fundo que Tarek Al-Farrah, de 23 anos, concluiu a licenciatura.
Vive em Khan Younis, uma cidade no sul da Faixa de Gaza, onde atualmente Hamas e Israel travam uma guerra que já conta com milhares de mortos palestinianos.
Foi em Khan Younis que Tarek sempre viveu. Antes numa casa, com paredes, teto, chão; agora numa tenda num campo de deslocados da cidade, ao lado de outras tantas dezenas de palestinianos na mesma situação.
Faz parte das vítimas quase silenciosas desta guerra. Não morreu, não está ferido; a família permanece intacta - todos os seus seis membros. E, contra todas as expectativas, Tarek não só conseguiu acabar a licenciatura como o conseguiu com notas tão altas que lhe valeram uma vaga na Universidade Nova de Lisboa no mestrado em 'Tendências em Estudos Ingleses e Norte-Americanos', que é dado em inglês.
Tarek não consegue o visto e o ministério "não tem soluções"
A escolha por Portugal não foi difícil para o jovem palestiniano. Não só tem uma amiga que aqui estuda, e que o ajudou na candidatura, como também foi aqui que o seu jogador de futebol preferido nasceu e cresceu. Trata-se, como não podia deixar de ser, de Cristiano Ronaldo.
Para Tarek, o mestrado não é apenas um mestrado: representa uma oportunidade de deixar para trás a guerra em que vive. Para isso, precisa de conseguir o visto de estudante e sair da Faixa de Gaza.
“De acordo com os procedimentos em vigor, o pedido de visto deve obrigatoriamente ser submetido presencialmente junto de um Posto Consular habilitado para o efeito”, respondeu o Ministério dos Negócios Estrangeiros à representante de Tarek em Portugal, quando questionado sobre o impasse.
E acrescentou, ilibando-se de responsabilidade: “Estamos conscientes dos significativos constrangimentos de mobilidade enfrentados na região, mas a deslocação até ao posto consular permanece uma responsabilidade do requerente.”
O posto consultar em questão fica em Ramallah, na Cisjordânia, e o caminho para lá não é fácil: aliás, parece quase impossível para quem se encontra na Faixa de Gaza.
Os palestinianos que lá vivem não podem atravessar as fronteiras de um lado para o outro livremente. Apesar de a Cisjordânia ser, tecnicamente, parte da Palestina (assim como Gaza) está sob o domínio israelita - e, portanto, o controlo de fronteiras é feito pelas forças de Telavive, que raramente autorizam passagens.
Sobre isto, o ministério português enviou apenas um “comprovativo formal de agendamento para a submissão do pedido” que indica “como intervalo possível as datas entre 28 de julho e 7 de agosto”, ou seja, até esta quinta-feira.
“Este comprovativo poderá ser utilizado enquanto fundamento para a saída da Faixa de Gaza, embora a respetiva emissão de autorização seja sempre da responsabilidade das autoridades locais competentes”, afirmou o ministério português.
A resposta à representante do Tarek acrescenta ainda que o pedido de visto pode ainda ser feito “de forma excecional” no Cairo, Egito, junto da embaixada portuguesa.
O Notícias ao Minuto contatou o Ministério dos Negócios Estrangeiros, mas não obteve resposta. Já o posto consular de Ramallah afirmou apenas que o caso já é do conhecimento do ministério, e que quaisquer esclarecimentos têm de “ser dirigidos à assessoria de imprensa do Gabinete do Senhor Ministro dos Negócios Estrangeiros.”
O mestrado começa dia 16 de setembro, daqui a pouco mais de um mês. Sobre isto, Tarek constatou apenas: “Não me deram soluções”.
Associação de estudantes expressou a sua "solidariedade"
Os seus possíveis futuros colegas, já mostraram o seu descontentamento e indignação com a situação de Tarek.
Num comunicado enviado às redações, a Associação de Estudantes da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (FCSH) expressou “a sua solidariedade com o jovem palestiniano Tarek Al-Farra que, inscrito e com a propina paga para estudar num mestrado na FCSH, não consegue o visto para estudar em Portugal.”
"Exige-se, da parte da Universidade NOVA de Lisboa que sejam garantidos todos os procedimentos que permitam fazer desbloquear este processo e que pressionem o Governo a cumprir as suas obrigações", continuou o comunicado.
Como foi tirar uma licenciatura em Gaza
O caminho de Tarek para Portugal parece quase impossível, mas até aqui também se mostrou cheio de obstáculos.
O maior desafio, contou o jovem ao Notícias ao Minuto, foi a internet - um bem que em Portugal se dá como adquirido, lá é quase uma raridade. E uma ligação à internet é, de facto, crucial: para o Tarek era a única maneira de terminar a licenciatura.
“Não podia ir fisicamente à universidade porque todas as universidades foram destruídas nos primeiros meses da guerra”, contou Tarek. Portanto, o estudo, os exames, os trabalhos e as aulas: tudo era online.
Tarek tem um cartão E-SIM no telemóvel que, de vez em quando, em certos pontos do enclave e em determinadas horas do dia, consegue rede suficiente para ligar os dados móveis.
Quando questionado sobre onde conseguia internet, Tarek respondeu com um vídeo que tinha publicado no Instagram há mais de um ano, não muito depois de a guerra ter começado.
Fala em inglês no vídeo, como o estudante de 'Línguas e Tradução' que ainda é, nesta altura. Conta como está no topo de um edifício de madrugada, com os drones israelitas a voarem por cima da sua cabeça - os mesmos que atacam o enclave e fazem milhares de mortos.
“É uma da manhã e estou a arriscar a minha vida para ir ao sexto andar de um edifício em completa escuridão para conseguir ligação à internet, através do meu E-SIM”, escreveu na descrição do vídeo.
“Enquanto isso, os drones e os quadricópteros estão a voar por aqui. E apesar de isto ser arriscado tenho de fazer upload das minhas palestras para as ver e estudar. Falta-me só um ano para me formar e ter a minha licenciatura, por isso, preciso de aproveitar todas as hipóteses e acabar os meus estudos dê por onde der. Desejem-me sorte e segurança”, continuou a nota.
Em Khan Younis há um centro que disponibiliza internet e que os estudantes usam para trabalhar, mas está sempre “muito cheio e é impossível lá ficar durante muito tempo.” E para além disso há o custo da própria internet que é “demasiado alto”.
Tarek angaria dinheiro para alimentar a família no Instagram
Na Faixa de Gaza quase todos os preços são demasiado altos. Tarek disse que, por semana, a família precisa de, pelo menos, 500 dólares para sobreviver. Tudo somado, são quase dois mil dólares mensais (cerca de 1.700 euros), numa família em que Tarek é o único que recebe.
O financiamento não vem através de um trabalho tradicional, mas sim das redes sociais, nomeadamente do Instagram. É lá que o jovem faz vídeos regularmente a documentar o que acontece no enclave e daí recebe o dinheiro que o vai alimentar a ele e à família.
“Foi tão difícil e uma jornada cheia de desafios”, contou o jovem palestiniano. “Estava sempre a tentar encontrar internet estável para fazer o upload das minhas palestras e para fazer os meus trabalhos. E durante o meu último ano estava constantemente a ter de mudar de sítio com a minha família”, disse.
O antes da guerra na Faixa de Gaza
Uma diferença drástica, quando comparado com o antes: quando tinha uma casa, quando a universidade ainda estava de pé, quando não tinha de arriscar a vida para conseguir ter internet.
E a diferença é especialmente notória quando há imagens - que Tarek decidiu partilhar e que pode ver na nossa galeria acima. Mostram aulas, salas e auditórios, a turma de Tarek e os seus amigos de universidade, numa altura em que o edifício ainda estava de pé e a guerra não tinha chegado ao enclave.
Tarek é o filho mais velho de quatro irmãos. A mãe, antes da guerra, era proprietária de um estúdio de maquilhagem que, em pouco tempo, foi arrasado pelas bombas. Dos irmãos, há um outro que está agora a tentar entrar na licenciatura e que fala também em vir fazer o mestrado em Portugal.
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