"[Ela] foi por outro lado e eu e a mãe não a vimos. Ela perdeu-se pelo caminho. Não pensei em voltar por medo dos bandidos. Eu tive medo de encontrar os bandidos", conta à Lusa o camponês, que já teve de fugir, em pouco mais de um ano, de outros dois ataques de grupos terroristas.
Afonso, a esposa e seus oito filhos saíram juntos da aldeia de Magaia, a fugir de um ataque numa zona próxima, e seguiram para o posto administrativo de Chiúre Velho, também palco de um ataque no mesmo dia, 24 de julho.
"Quando começaram a atacar eu saí a correr, sem levar nada. É por isso que perdi essa filha, só por correr (...). Este ano produzi ervilha, milho, mandioca e ficou tudo lá. Não tivemos tempo para levar mandioca ou milho, não tivemos tempo, estou a viver assim mesmo, grão a grão", desabafa Afonso, já acomodado na Escola Primária Completa (EPC) dos Coqueiros, na vila sede de Chiúre, que serve de Centro de Trânsito.
A filha, Adelina, 12 anos, perdeu-se da família em Natoco, um pouco depois de Chiúre Velho, quando caminhavam noite e dia, pela mata, até à vila sede, um dos poucos lugares seguros no distrito, onde a Lusa encontrou a família, na escola dos Coqueiros.
O pai passou três dias aflito atrás de Adelina, em aldeias nos arredores de Chiúre sede, outros centros de deslocados e até se queixou na rádio local, mas sem respostas.
"Procurei por três dias sem encontrar a minha filha. Eu fiquei cansado, sem saber de nada", diz Afonso Vasco, que reencontrou a filha na EPC dos Coqueiros, finalmente, através de uma mulher desconhecida que também fugia dos terroristas.
"Quando encontrei a minha filha fiquei alegre, fiquei alegre mesmo", diz, já com a filha nos braços.
O camponês, que trazia nas mãos uma camisola cor-de-rosa, das poucas coisas que conseguiu carregar, tentou dar uma recompensa à mulher, mas ela recusou, sugerindo que com esse dinheiro comprasse comida para a família.
Milhares de outras pessoas fizeram também os 50 quilómetros até à sede do distrito de Chiúre, a maioria de pés descalços, com a Organização Internacional para as Migrações (OIM) a apontar para mais de 57 mil deslocados entre 20 de julho e 03 de agosto, na nova onda de ataques.
Mussa António, 29 anos, é parte desta estatística e, como Afonso, perdeu dois irmãos durante a fuga e só chegou ao Centro de Trânsito com a sua esposa e quatro filhos.
"Eu fugi com a minha esposa e quatro filhos e perdi os meus dois irmãos, que estão no mato, ainda, eu não sei onde estão", diz o carpinteiro que foge pela terceira vez.
Foram mais de três horas de caminhada, sem comida e água, com dois filhos ao colo, a mais velha, de seis anos, a caminhar sozinha e a esposa a segurar o outro.
Mussa António chegou à EPC dos Coqueiros só com a roupa do corpo e preocupado com os irmãos desaparecidos.
"Naquele dia eu estava na minha casa a sentar só, a fazer nada, eles entraram no centro e começaram a disparar e nós começámos a correr até chegar aqui. Não levei nada", queixa-se, referindo que o passo a seguir é "arranjar maneira" de voltar para casa para "procurar a vida".
"A minha vida estou a procurar ali mesmo, aqui não tenho maneira para procurar a minha vida. Eu não sei quando voltar, tenho medo, mas tenho que voltar. Se atacarem vou fugir de novo", afirma Mussa António.
A convicção de Mussa é a de quase todos os deslocados. Têm medo dos terroristas, mas ainda assim querem regressar às suas zonas de origem, assumindo sempre a possibilidade de uma nova fuga e consequentes perdas, mas nada a que já não estejam acostumados.
Fugas repentinas e recorrentes em que deixam mandioca, ervilha e milho para trás, além de perderem familiares no trajeto de quilómetros feito muitas vezes a pé e com crianças ao colo.
Do total de 57.034 deslocados em duas semanas em Chiúre, 490 são grávidas, 1.077 idosos, 191 pessoas com problemas de mobilidade e 126 crianças separadas dos pais, indica a OIM, no mais recente relatório a que a Lusa teve acesso.
Segundo esta agência da ONU, os agentes no terreno apontam que "a alimentação é a necessidade humanitária mais urgente", seguida de abrigo e itens não alimentares.
Elementos associados ao grupo extremista Estado Islâmico reivindicaram na segunda-feira novos ataques nos distritos de Chiúre e Muidumbe, com pelo menos cinco pessoas decapitadas, num momento crescente de violência naquela província moçambicana.
Vários distritos de Cabo Delgado, sobretudo Chiúre, estão a registar uma crescente atividade por parte de elementos destes grupos nos últimos dias. Na semana passada, extremistas reivindicarem também a decapitação, em locais diferentes, de pelos menos três cristãos moçambicanos.
O ministro da Defesa Nacional admitiu, em 31 de julho, preocupação com a onda de novos ataques em Cabo Delgado, adiantando que as forças de defesa estão no terreno a perseguir os rebeldes armados.
A província de Cabo Delgado, rica em gás, enfrenta desde 2017 uma insurgência armada que já provocou mais de um milhão de deslocados.
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