Com 15 dias Neusa foi carregada dia e noite pelo pai para fugir a terroristas

Neusa foi levada mata fora, dia e noite, pelo pai, durante 50 quilómetros, fugindo ao ataque terrorista em Chiúre Velho, sul de Cabo Delgado, Moçambique, e com 15 dias de vida carrega uma história que Agostinho talvez lhe conte.

Moçambique quer esforços conjuntos com Tanzânia no controlo da fronteira

© Lusa

Lusa
30/07/2025 06:54 ‧ ontem por Lusa

Mundo

Moçambique

"Ainda não completou o mês", explica à Lusa, enquanto carrega nos braços, com todos os cuidados, embrulhada numa manta cor-de-rosa, a bebé Neusa, nascida em 13 de julho numa aldeia do posto administrativo de Chiúre Velho, de onde partiu, pelas matas, na sexta-feira, com menos de duas semanas.

 

"Foi devido à situação. Al Shabab [Ahlu-Sunnah wal Jama`a (ASWJ)]", explica, num português difícil de falar, misturado com o nervosismo de uma nova fuga, a segunda em pouco mais de um ano, para escapar a terroristas que o levaram, e à família, ao recreio da Escola Primária Completa (EPC) dos Coqueiros, na vila sede do distrito de Chiúre.

"Tenho medo, sim", desabafa Agostinho, camponês de 27 anos, receoso, recordando que a mesma caminhada que fez dia e noite com duas crianças e a mulher - agora também a bebé -, já tinha sido obrigado a percorrer em março de 2024, aquando do primeiro ataque à aldeia, onde até agora dependia de algum gergelim produzido na sua machamba (campo agrícola).

"É a segunda vez a fugir. Eu não quero voltar para lá", afirma, enquanto ajeita o gorro com a inscrição "baby" de Neusa, para logo a seguir garantir, convictamente, sobre o futuro: "Para outro lado, é para assentar mesmo".

Elementos associados ao grupo extremista Estado Islâmico reivindicaram um ataque, na quinta-feira, à aldeia e ao posto policial de Chiúre Velho, no sul da província de Cabo Delgado, com armas automáticas, levando material do seu interior.

A reivindicação, feita através dos canais de propaganda, é documentada com um vídeo, em que os rebeldes, alegadamente pertencentes ao grupo Ahlu-Sunnah wal Jama`a (ASWJ), surgem a disparar rajadas de tiros de metralhadora e entram naquele posto policial, garantindo ter levado material, após queimarem uma viatura e "libertarem presos muçulmanos", com registo de pelo menos uma pessoa decapitada no centro da localidade.

Rosário Aly, 50 anos, também camponês, de outra aldeia de Chiúre Velho, chegou à EPC dos Coqueiros no sábado. Em pouco mais de um ano é a terceira fuga a pé que faz com a família, incluindo os cinco filhos e a mulher.

"Fugi três vezes para aqui. Esta é a terceira vez", confessa, conformado, sobre a fuga a pé em março e junho de 2024, repetida agora, com os três meninos e duas raparigas, além da esposa.

É que ao sinal dos vizinhos sobre a aproximação dos insurgentes, todos partiram com a roupa do corpo.

"Fugiam de moto aqueles que tinham dinheiro. Nós que não tínhamos dinheiro fugíamos a pé", conta.

Ainda assim, o regresso à casa, que não sabe como está após a passagem dos terroristas, é certa, de novo: "Sim, porque a nossa terra é lá mesmo. É lá que temos a mandioca".

Oficialmente, agências no terreno contabilizaram, até agora, mais de 34.000 novos deslocados só entre 20 e 25 de julho, devido a novos ataques insurgentes, nos distritos de Chiúre, Ancuabe e Muidumbe.

Só em Chíure sede, a onda de deslocados que se avoluma desde quinta-feira chega, segundo estimativas no terreno, a 3.500 famílias, distribuídas por casas de familiares, mas sobretudo por dois centros temporários em duas escolas da vila, esta semana sem aulas.

Na EPC dos Coqueiros estão mais de 1.900 famílias, que desde terça-feira começaram a receber ajuda humanitária das agências das Nações Unidas, no mesmo recreio em que as mulheres cozinham de forma improvisada e centenas de crianças bricam quase normalmente, numa escola sem aulas.

A província de Cabo Delgado, no norte do país, rica em gás, enfrenta desde 2017 uma rebelião armada, que provocou milhares de mortos e uma crise humanitária, com mais de um milhão de pessoas deslocadas.

Pelo menos 349 pessoas morreram em ataques de grupos extremistas islâmicos no norte de Moçambique em 2024, um aumento de 36% face ao ano anterior, segundo estudo divulgado em fevereiro pelo Centro de Estudos Estratégicos de África (ACSS).

De acordo com aquela instituição académica do Departamento de Defesa do Governo norte-americano, que estuda assuntos relacionados com a segurança em África, esta "recuperação dos níveis de violência" em Moçambique "reflete a estratégia" do grupo ASWJ -- afiliado do EI, a operar na província de Cabo Delgado - de "alargar o conflito, deslocando-se para o interior e para áreas mais rurais".

Paulo Julião (texto e vídeo), Rui Celestino (texto) e Luísa Nhantumbo (fotos), da agência Lusa

Leia Também: ONU diz que "deslocamento forçado" está longe de acabar em Cabo Delgado

Partilhe a notícia

Escolha do ocnsumidor 2025

Descarregue a nossa App gratuita

Nono ano consecutivo Escolha do Consumidor para Imprensa Online e eleito o produto do ano 2024.

* Estudo da e Netsonda, nov. e dez. 2023 produtodoano- pt.com
App androidApp iOS

Recomendados para si

Leia também

Últimas notícias


Newsletter

Receba os principais destaques todos os dias no seu email.

Mais lidas