"Degolaram uma pessoa quando estávamos a fugir (...). Fugi com a minha esposa junto com duas crianças, e uma criança que não faz parte da minha família, só que estava a me seguir, ainda está comigo. Estava perdida", conta Pedro Soares, 27 anos, enquanto se tenta reorganizar, no recreio da escola básica de Miconi, na sede da vila de Chiúri.
Por ali, milhares começaram a chegar no fim de semana, com pelo menos duas escolas da vila sede do distrito tomadas por deslocados das zonas mais a sul, atacadas nos últimos dias por grupos de insurgentes, associados ao Estado Islâmico.
A maioria repete a viagem, a pé, por mais de um dia, feita em março de 2024, quando uma onda violenta de ataques terroristas levou à debandada de aldeias inteiras.
Para Pedro, ativista comunitário na área da saúde e HIV, é já a terceira vez que foge da aldeia de Maririni, Chiúre Velho, a 50 quilómetros. Desta vez, acabou por trazer a criança de alguém, de oito anos.
"Já descobrimos a família", explica, acrescentando que nas últimas horas conseguiu chegar à fala com os pais, escondidos numa mata próxima de casa: "A criança fica consigo, segura bem", foi o recado que ouviu do outro lado do telemóvel, numa ligação quase impercetível.
A fuga, junto com as crianças, fez-se durante a noite, entre umas horas dormidas numa aldeia vizinha, sempre com relatos de que os terroristas "se estavam a aproximar".
Para já, o tempo é de esperar por alguma segurança, antes de pensar nos próximos passos, embora não encontre explicações para novo ataque à aldeia: "Até já, ainda não sei".
Elementos associados ao grupo extremista Estado Islâmico reivindicaram um ataque, na quinta-feira, ao posto policial de Chiúre Velho, no sul da província de Cabo Delgado, com armas automáticas, levando material do seu interior.
A reivindicação, feita através dos canais de propaganda do Estado Islâmico (EI), é documentada com um vídeo, em que os rebeldes, alegadamente pertencentes ao grupo Ahlu-Sunnah wal Jama`a (ASWJ), surgem a disparar rajadas de tiros de metralhadora e entram naquele posto policial, garantindo ter levado material, após queimarem uma viatura e "libertarem presos muçulmanos", desconhecendo-se vítimas ou feridos desta ação.
Por ali, pouco antes, estava Adelina Adolfo, 20 anos. Deixou tudo para trás na aldeia de Namitil, no sul de Cabo Delgado, desde quinta-feira, e, ao fim muitas horas a caminhar, pela mata, com a filha de sete meses ao colo, chegou ao recreio da mesma escola.
"Estou a sofrer muito, não tenho roupa. Deixei a roupa em casa, não tenho comida", conta à Lusa, enquanto dezenas de crianças brincam no recreio da escola, fechada, num cenário de aparente normalidade, não fosse o espaço ter sido tomado por fogueiras e panelas com as mulheres a tentarem cozinhar algum arroz com o cair da noite.
Para a viagem trouxe "algumas coisas" e conseguiu juntar-se a "muitas pessoas" ao longo da caminhada fugindo ao receio, noite fora: "Ouvimos que estava a acontecer a guerra".
Os deslocados do sul de Chiúre continuam a chegar à escola, onde, num campo ao lado, as crianças jogam futebol e os mais velhos tentam procurar comida. As mulheres juntam-se nas panelas ao fogo cozinhando com o pouco que têm, enquanto tendas improvisam camas para receber um número crescente de deslocados, ficando as aulas, para os alunos da vila, para outro momento.
Afonso Camisa, camponês e comerciante de 43 anos, iniciou a fuga a pé na quinta-feira, desde a aldeia de Ntonhane, com a esposa e oito filhos, depois de ver o sobrinho, de 41 anos, degolado por insurgentes.
"Lá entraram terroristas, até que degolaram o meu sobrinho. Queimaram cinco casas, a minha casa não queimaram, mas arrombaram a porta e levaram sete sacos de feijão e cinco sacos de milho", relata, num prejuízo material que representa muitos meses de trabalho na machamba (campo agrícola).
Hoje, diz, a "aldeia está vazia", mas não consegue perceber o porquê dos ataques: "Perceber eu? Porque fizeram? Não sei. É guerra, não sei. São terroristas".
"Não sei como explicar, só estou a ver", acrescenta, admitindo que já em março de 2024 viveu o mesmo pesadelo, de fugir, deixando tudo para trás, com 85 casas incendidas na aldeia, a mesma onde na sua machamba produz amendoim, milho, gergelim, feijão, para consumir e vender.
Ainda assim, tem uma certeza: "Quando ficar calmo hei de voltar para casa porque aqui não consigo viver".
Preocupações que no mesmo espaço da escola, à entrada da sede de Chiúre, são partilhadas pelo camponês Estêvão Bernardo, 45 anos.
Fugiu no domingo, sozinho, de Ntonhane. A mulher ficou na mata, com os cinco filhos e um neto, com idades de cinco a 17 anos.
Em pouco mais de um ano, é a segunda vez que deixa tudo para trás devido aos ataques dos terroristas. Só a pé foram mais de 35 quilómetros, pelas matas, até chegar a Chíure.
"Entraram lá, degolaram um senhor mesmo na estrada, queimaram seis casas, por isso não consegui localizar e levar mulher e os filhos. Estive a tentar mesmo fugir pelo mato, e surgi na estrada, pelo outro lado", conta, para logo depois garantir que conseguiu falar com a mulher: "Estão todos bem".
"Não tenho condições. Desde manhã que estou aqui", desabafa, sobre o centro improvisado na escola.
"A minha casa não foi atingida, mas foi roubada, levaram os meus bens", relata, garantindo que, mal possa, volta à aldeia.
"Como não tenho condições para viver aqui, quando acalmar vou voltar para lá. Não tenho condições para viver na cidade", atira.
A província de Cabo Delgado, no norte do país, rica em gás, enfrenta desde 2017 uma rebelião armada, que provocou milhares de mortos e uma crise humanitária, com mais de um milhão de pessoas deslocadas.
Pelo menos 349 pessoas morreram em ataques de grupos extremistas islâmicos no norte de Moçambique em 2024, um aumento de 36% face ao ano anterior, segundo estudo divulgado em fevereiro pelo Centro de Estudos Estratégicos de África (ACSS).
De acordo com aquela instituição académica do Departamento de Defesa do Governo norte-americano, que estuda assuntos relacionados com a segurança em África, esta "recuperação dos níveis de violência" em Moçambique "reflete a estratégia" do grupo ASWJ -- afiliado do EI, a operar na província de Cabo Delgado - de "alargar o conflito, deslocando-se para o interior e para áreas mais rurais".
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